Serpa, onde o coração bate mais forte - RELATO DA CARLA VÉLEZ
Serpa, onde o coração bate mais forte
Depois de andar por terras andaluzas, em puro asfalto, fui incumbida de relatar o feito de uma prova em trilhos, agora em solo português, mais precisamente em Serpa. Poderia ter acrescentado, em “planícies” alentejanas...mas enganem-se aqueles que assim o afirmam. Mais à frente, retomo esta linha de pensamento...
Tal como prometido, deixo-vos
aqui a minha experiência.
Uma breve nota....Para os
leitores mais apressados, sugiro então o salto imediato para o capítulo Dia D.
Para os amantes de leitura, cultura e gastronomia, aguço a vossa curiosidade e
convido-vos a ler o roteiro na íntegra.
A
Véspera
Lisboa,
15/04/2016 – 18:00h
Após uma semana de chuva intensa, de consultas diárias a sites de meteorologia-chegando ao ponto de se recorrer a informações prestadas por repórteres locais sobre a previsão do tempo- rumámos (Falcões de Monsanto), a sudeste, ao chamado Alentejo profundo, com a vã promessa de bom tempo, com um senão de 70% de humidade.
Certo é que chegámos a Serpa, de noite, com um céu estrelado.
No check-in da Guesthouse, a gerente uma vez mais menciona a falta de chuva.
-Ah, isso só lá para Lisboa, que sei que tem estado muito mal. Vi nas notícias, árvores caídas, inundações...Por aqui, quanto muito, apenas uns chuviscos!
Bom-pensámos-afinal, confirmam-se as previsões.
Mais descansados, deixámos a bagagem e iniciámos o nosso roteiro gastronómico.
No decorrer da semana, após indicações de alguns "experts" e criadas muitas expectativas, foi-nos comunicado de que o Zé Lebrinha, o muito afamado restaurante por servir a melhor imperial do país, encontrava-se em remodelação.
Assim, seguimos pelas ruas calcetadas de Serpa (à semelhança das de Lisboa, óptimas para calcorrear em saltos altos!), em direcção à nossa segunda escolha, a Adega Molha o Bico (ou na gíria, o Molhó Bico). Muito aprazível, acolhedor, gente afável e atenciosa para com os visitantes. O interior está decorado com artefactos rústicos, quadros de pintores locais e fotografias datadas de meados do século passado, retratando o Grupo de Cantar Alentejano, aquando visita da Rainha Isabel II ao nosso país (segundo fonte local!).
Para esta noite, elegemos como refeição, pratos tipicamente alentejanos - o ensopado e as costeletas de borrego- acompanhados, claro, do belo pão alentejano (este sim, o verdadeiro!). E...quanto à sobremesa...bem aqui, perante as diversas alternativas possíveis (qual delas a mais gulosa e mais calórica), decidimos quebrar o regime, optando pela tarte de requeijão (soberba!) e a sericaia (deliciosa, com direito a ameixa, não de Elvas, no topo, embebida e caramelizada em mel).
Depois deste manjar, deixámos o restaurante, sabendo que no dia seguinte, em recompensa do esforço da prova, lá estaríamos de novo para provar outras iguarias e doçarias mais, de fazer crescer água na boca.
No curto trajecto que dista o Molhó Bico e a Guesthouse, deparámo-nos com o breu do céu, agora diferente...onde o brilho das estrelas foi ofuscado por nuvens cinzentas persistentes.
Humpfff. Mau presságio....
Descanso.
Dia
D
Serpa, 16/04/2016 - 06.00h
O dia amanheceu com um céu carregado, diria
mesmo tenebroso. Durante a noite, houve fortes aguaceiros. Já se adivinha o que
está para vir....Humpfff! Mais uma prova à chuva...
A uma hora do começo da prova, sentimos os
primeiros pingos....
Encaminhamo-nos para o estádio municipal a
fim de levantar os dorsais e reunimo-nos aos restantes atletas do Grupo
Millenniumbcp, acabados de chegar de viagem.
Entram em cena os Misters Fernando Alcides
e Rui Ramalho, José Farinha, Carla Lourenço, Paula Batalha, Inês Lemos, Paulo
Caetano, Miguel e Vanda Rosa, Ceú Movilha e Elsa Moreira.
Enquanto a organização monta as estruturas
da prova, desaba uma forte chuvada sem contemplação. Está bonito, está!
-Isto ainda vai passar. Acreditem que o dia
vai abrir e estão previstos 22⁰C. – incentiva o" staff".
-Hã, hã.... – assentimos nada convictos.
A meia hora do começo, a chuva é contínua e
intensa.
A Paula vira-se para o grupo e comenta: “Ó
pá, a ver se não me esqueço de pôr o protector!”
Ninguém quer acreditar. É a risada geral.
Com um tempo destes, só pode estar a brincar.
Entretanto, cai uma verdadeira enxurrada,
de tal forma que, o grupo protege-se no interior dos seus veículos e, nós,
Falcões só temos tempo de nos abrigar debaixo da porta traseira do carro.
O Ramalho faz negaças através do vidro da
janela da carrinha. O Alcides ri. O Caetano, muito zen, encolhido a um canto,
aproveita para descansar mais um pouco. A Paula, sempre a conversar com a Carla
e a Inês e o Farinha, nos seus últimos ajustes do equipamento.
Aceno para as janelas embaciadas e
questiono: Alguém quer aproveitar para colocar protector? - Risadas.
Uma fracção de segundos de paragem de
chuva...O grupo reúne-se cá fora pronto para o aquecimento. Falso alarme! Nova
torrente.... De volta ao interior dos habitáculos. Tempo ainda para o Farinha
mostrar o seu fantástico impermeável, ultra leve mas resistente, modelo
desenhado (estudado ao pormenor, com resguardo transparente para o GPS), e
testado pelos atletas profissionais na muito dura e exigente prova do Monte
Branco.
O Mister Ramalho profere: “Malta, temos de
aquecer! Bora lá, men!”. Sim, Sim... Dá apenas para tirar umas fotos de grupo e
regressarmos ao conforto dos carros.
A 5 minutos da prova, rendemo-nos à
evidência e, para não transmitir uma má imagem, juntamo-nos aos restantes
participantes.
Chuva forte e poucas perspectivas de
melhoria, mal conseguimos ouvir o organizador da prova. Captamos uma parte
relevante do seu discurso: “.... ter cuidado com algumas pedras junto ao rio,
encontram-se muito escorregadias.”
09.00h e alguns minutos, a prova tem o seu
começo.
Os primeiros quilómetros – em estrada, no
interior das ruas de Serpa. Saída para a zona comercial e entrada nos estradões
de terra batida, de piso irregular e muito molhado.
Como se já não bastasse a chuva, junta-se à
festa, um forte vento. Espectáculo! Dá jeito o chapéu de pala grande.
Encolhidos, fazendo frente ao vento e
chuva, continuamos.
Passamos por várias quintas e extensas
propriedades, com algum gado bovino, muito ovino e caprino (claro está, não
fosse Serpa uma região de excelente produção de queijo!), que assiste impávido
e sereno ao rebuliço inesperado.
A esta altura, já tinha deixado para trás a
companhia do Falcão-Mor e distancio-me do Miguel e da Elsa que, avançam a um
ritmo mais rápido. Têm outros objectivos. Calma, Carla, tens pela frente 40
kms+2 e não sabes o que te espera...
Mesmo antes do 1º abastecimento, a lama já
se faz sentir. Não paro, sigo em frente.
Uma subida para um prado verdejante, muito
lamacento. A percentagem de humidade dá um ar de sua graça. Tempo para retirar
o cortavento. Azar dos azares, o cinturão fica laço, desprende-se o GPS e
saltam os auscultadores. Minutos perdidos..mais valia ter parado no
abastecimento para estes ajustes. Enfim...siga!
Não chove, por enquanto...alguns raios de
sol trespassam por entre as nuvens carregadas.
A prova segue agora um percurso lindo, por
meio de charnecas, junto a um riacho.
Mais à frente, seguindo um pequeno grupo,
perco-me. As fitas não estão visíveis. Volto para trás e retomo o troço
correcto. Cruzo-me com o Falcão-Mor e a Batalha, que continuam o seu caminho.
Agora todo o cuidado é pouco, trilhos
completamente descaracterizados pela lama, já muito deslizante e pisada pelos
atletas. Nesta parte do percurso e, ao contrário da prova de Almourol, os
trilhos são inclinados, sem bermas, árvores, arbustos ou raízes onde nos
possamos apoiar. Um passo em falso e...queda livre garantida nas ravinas.
Adiante, deparo-me com o caminho cortado.
Única hipótese, é seguir, deslizando ao sabor da lama. Há muito que a sola dos
ténis desapareceu. No seu lugar, é só camadas de lama, sendo mais difícil
manter a passada de corrida. A sorte, são as muitas poças existentes.
Mergulham-se literal e profundamente os pés, lavam-se os ténis e siga!
Ao final deste trilho, aguarda, num alto,
tranquila e estrategicamente bem posicionado, um fotógrafo. Objectivo: captar
as imagens dos atletas no seu “melhor”. Como?! Sim...para regressar ao
estradão, há que subir uma pequena ladeira completamente enlameada. Não há
outra hipótese senão colocar as mãos na massa, perdão, lama e patinar até ao
topo. E lá está ele, atento, sem perder pitada!
10 kms – Encontra-se
convenientemente colocado um posto de abastecimento líquido. Imediatamente a
seguir ao momento de patinagem artística e antes dos 5kms de subida em
estradão. Pausa sucinta para “limpeza facial” e “hidratação de mãos” (nota da
autora: retirada do excesso de lama!)
No carrocel de subidas,
alcanço a Paula, questiono-lhe se está bem e se segue para os 40 kms(+2).
Responde-me com garra que vai até ao fim, claro! Despeço-me com um até já.
“Mais à frente, já me apanhas.”
O São Pedro parece ter
feito uma pausa nas limpezas do terraço. Não chove. Vem o Sol e o calor
primaveril marca, finalmente, a sua presença.
Sinto-me com garra e
todas as extensas subidas são feitas a correr. Na linha do horizonte, avisto o
Falcão-Mor e a Inês. Vão muito bem! Sigo-os, a curta distância, são o meu novo
alvo.
O percurso é agora retratado por pitorescas paisagens bucólicas, planícies campestres polvilhadas de cores matizadas. Muito serenamente, pastam 3 cavalos, um deles, um potro.
-Isto, eu não posso
perder!- A imagem é capturada pela câmara do telemóvel (acabou por ser a única
da prova).
Surgem as tabuletas do abastecimento dos 15 kms e do 1º posto de controlo. A separação das duas provas dá-se aqui.
No abastecimento, tempo
apenas para mastigar à pressa um pedaço de fruta, reabastecer de água e
recolher alimentos para a “viagem”. Enquanto isso, sou agradavelmente
surpreendida com o comentário do staff da organização: - Estamos na presença
das duas primeiras mulheres dos 40kms. Sim, senhor, parabéns! - Ao ouvir isto,
despeço-me da Inês e do Falcão-mor e ala que se faz tarde!
Uau, um lugar no pódio!
Isso seria fantástico. Há que fazer por isso!
Em sprint, empenho-me na
subida extensa de asfalto, sem olhar para trás e, assim, entrei na Serra de
Serpa. Alentejo plano, quem proferiu tal blasfémia! Um sobe e desce
constante....
Nenhuma
vivalma...Completamente sozinha mas feliz com um novo objectivo já traçado
(desde que as pernas não me falhem…). Vão ser assim os últimos 22 kms.
O S. Pedro retoma as
limpezas e, desta vez, lembra-se de fazer a faxina primaveril (completa!).
Chuva forte, fria e intensa. Visto novamente o corta-vento.
Ao fim de
algum tempo, sinto a presença de um atleta. À minha frente, reservando alguma
distância, vai assinalando os perigos e obstáculos bem como o melhor trilho a
seguir. A atenção é redobrada ao descer um corta-fogo abrupto. Depois, subida a
pique a outros mais até ao 2º posto de controlo. Páro, momentaneamente, a meio
de uma destas subidas. Admiro a visão idílica, verdejante da floresta cerrada,
pontilhada, aqui e ali, por estevas, brancas como a neve.
22kms- Posto de
controlo. Paragem breve, o suficiente para agradecer ao staff a excelente
organização da prova. Sigo.
A chuva dá tréguas aos
25 kms, altura em que entro novamente em estradão.
26,2 kms- Abastecimento
de água improvisado e muito bem-vindo.
Entro num circuito
fechado que ladeia duas propriedades com terras de pastagem. As ovelhas e as
cabras com as suas crias ali tão perto, olham-me mansamente. Belas fotos
seriam...Vamos lá, não há tempo a perder!
Piso bera, muito
enlameado, cheio de lençóis de água e pequenos riachos.
30 kms - Abastecimento.
O GPS reflecte 32kms e mais qualquer coisa....Depois de passar por terras
recentemente aradas, e adivinhem, enlameadas, chego à estrada, 1 km de subida
seguido de uma bela descida até ao 3º posto de controlo.
33 kms - Aproxima-se,
segundo o gráfico do dorsal, o trajecto de maior altimetria. A subida à Ermida.
Mas antes, tempo ainda para um pequeno passeio por entre olivais.
A subida à Ermida
implica a escolha do “melhor” entre os piores carreiros revoltos, profundos e
lamacentos. Neste momento, já não corro com ténis...antes, pés de lama.
Segue-se uma ladeira
muito íngreme até à ermida, muito alva. Descida da escadaria da ermida, a
passo, retardado.
Últimos 7 kms- Descida
contínua, a claudicar. – Muito bom! Boa altura para falhar o joelho
esquerdo...e agora tão perto do final, vou morrer na praia…
Respiro fundo, cerro os
dentes e sigo em frente em passo rápido, não há outro remédio e não é vergonha
nenhuma. A cabeça ordena correr mas as pernas não obedecem. Vamos lá...falta
menos de uma mini-meia maratona. O que é isso para ti? Em esforço, lá vou eu.
Já dentro da cidade, com
indicações não muito precisas, sigo as faixas de sinalização.
Subida ao
Castelo...Pergunto quantos kms faltam pois o GPS já marca 40 kms. 2kms para o
fim (dizem-me sem certeza). Passo o arco da entrada do castelo, percorro o
casco antigo, com as suas ruas muito estreitas, casas caiadas, algumas delas
eleitas como a rua mais branca do ano. Chego à Torre do Relógio, desco a
escadaria e entro na Praça Central.
- Quantos kms faltam?
pergunto em esforço. 1 km...sigo. Pela última vez para ter a noção correcta da
distância, questiono: Quantos metros faltam? Pois se é para rebentar com o
joelho, é a estirada final! É logo ali... 50 metros, depois da curva e tem logo
a meta. Finalmente, alguém que sabe dar indicações precisas.....E assim é,
engulo em seco, cerro os dentes, gasto o meu último fôlego. Com a meta à vista,
esqueço a dor latejante, ergo a cabeça e, orgulhosamente, passo a linha de
meta. Termino a prova em 5h e 17 minutos (tempo real).
Vêm congratular-me por
ter sido a 2ª mulher da classificação geral dos 40 kms.
30 minutos volvidos e
reunidas as vencedoras, vamos até ao pódio receber os prémios, à vez. Tiramos a
foto de grupo. Tenho pena de não ver, no meio do público que aplaude, rostos
queridos ou amigos.
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