XX Edição 101 Km Ronda 2017 - Orgulhosamente Cientouneros

XX Edição 101 Km Ronda 2017 - Orgulhosamente Cientouneros


Como em todos os livros policiais, também aqui devemos tentar enquadrar algumas ideias que nos permitam resolver o "mistério".

Começamos então pelo

Onde: Ronda

Ronda é uma cidade na província espanhola de Málaga, na Andaluzia, que se encontra dramaticamente no topo de um desfiladeiro profundo. Este desfiladeiro (El Tajo) separa a cidade nova, fundada aproximadamente no século XV, da cidade velha, que data da ocupação moura. "Puente Nuevo" é uma ponte em pedra que atravessa o desfiladeiro e tem um miradouro para desfrutar das vistas panorâmicas. A Plaza de Toros da cidade nova, uma lendária praça de touros do século XVIII, é um dos pontos de referência mais reconhecidos da cidade.
Na cidade velha, o Palacio de Mondragón do século XIV é um antigo palácio mourisco, decorado com mosaicos ornamentados e rodeado por jardins paisagísticos. A Parroquia Santa María la Mayor, uma igreja construída nas ruínas de uma mesquita, integra estilos arquitetónicos que variam do gótico ao renascentista. Nas proximidades, o Museo Bandolero exibe armas que pertenceram aos bandidos dos séculos XVIII e XIX da região da Andaluzia. Para lá da cidade velha, os restaurados Baños Arabes (termas árabes) do século XIII têm abóbadas com claraboias impressionantes em forma de estrela. À saída de Ronda encontram-se as ruínas de Acinipo, uma povoação da era romana.
   (in "Guia Turístico de Ronda")

Móbil: Cumprir o sonho de percorrer 101 km em 24 horas, na mítica prova 101 km La Legion, e assim tornarmo-nos "cientouneros" .

Causa: Bom... dizem-me ter caído em pequenino, batendo com a cabeça no chão... depois, nunca mais fui o mesmo!

I - O início da história

Em 2008/09, se a memória não me atraiçoa, um grupo de amigos corredores (Eduardo Ferreira, Lanzinha, Rui Ramalho, Pedro Neves, Pedro Quaresma entre outros), por quem eu tinha e tenho a maior das admirações devido, entre outras coisas, às suas proezas nas corridas, decidiu fazer esta prova.

Acompanhei a sua preparação, física e logística, e começou a germinar em mim o desejo, algo fantasioso, de um dia ser capaz de fazer o mesmo.

Lembro-me de quando os heróis regressaram cobertos de glória, passados alguns dias e ainda muito cansados, de os estar a ouvir a narrar as proezas. O que mais me marcou, foi a descrição do modo quase reverencial no tratamento que todos dispensam aos atletas. Todos os que já cumpriram provas em Espanha sabem do que falo mas em Ronda, isso aumenta exponencialmente.

O sentimento de que um dia seria eu a poder contar estas histórias cresceu. No entanto, o sonho foi sendo adiado, por vários motivos, restando apenas a fantasia...

II - Preparação

Esta etapa é a mais complicada, acreditem...

São meses e meses de dedicação quase profissional:

 - Cuidados com a alimentação (perder peso é a meta de quem vai ostentando alguma felicidade ao nível abdominal).

 - Treinos no ginásio para reforço muscular.

 - Na corrida, treinos longos (cerca de 30 km) aos fins de semana, complementados com outras distâncias mais curtas, de modo a ter um acumulado semanal de cerca de 60 km.

III - Ronda - 101 km em 24 horas

Aqui chegados, todos os sacrifícios ficam rapidamente esquecidos.

O perfil da prova está aí, para quem tem curiosidade por estas coisas. Olhando assim até parece engraçado e algo fácil. Depois olha-se para o nº 100, em baixo à direita na legenda da distância e percebemos que vamos sofrer sim, não há volta a dar...



A partida é dada dentro de um estádio de futebol, com o campo circundado por uma pista de atletismo.

O ambiente é electrizante mas a organização, militarmente disciplinada, ajuda a acalmar os nervos, pois tudo se encaixa sem sobressaltos.


Bancada cheia, o espetáculo promete
 
A bancada está repleta de público que vai      animadamente acompanhando o "speaker" de  ocasião e os discursos motivadores das "altas"  individualidades.

Dado o sinal de partida, começa a fantasia a  cumprir-se na realidade. Tudo é novo para mim.   Será que sou capaz? Nunca corri / andei tantos km. No que me fui eu meter?

Multidão frenética no seu apoio

Os aventureiros do costume, acompanhados
 pelo José Carlos Faria



Os momentos que antecedem a partida




O segredo para ultrapassar estes receios é tentarmos divertirmos-nos, e nisso, Ronda é uma prova fantástica.

As ruas de Ronda estão repletas, o barulho é ensurdecedor. Nós somos uns heróis "empurrados" por esta multidão durante cerca de 4km.

Já não falta tudo!

Saídos da cidade, os marchadores vão-se apoiando mutuamente. Quando reconhecem a bandeira portuguesa que levamos, incentivam-nos com "animo portugueses". Querem saber de onde somos e elogiam várias cidades portuguesas que já visitaram.

Os km vão-se sucedendo, entrecortados apenas pela nossa chegada a cada um dos estrategicamente colocados abastecimentos, espaçados de 5 em 5 km.

O percurso é bastante rolante, passamos por vários "estradões" com piso pouco técnico. Nalguns pontos temos de sair da rota muito enlameada e procurar piso mais fácil.

Na primeira subida que se nos depara, está um grupo de populares, com uma mangueira de onde jorra água muito fresca. Deixamos molhar as cabeças porquanto o calor já aperta. Uma velhota e uma criança vão distribuindo rebuçados e palavras de encorajamento aos marchadores.

O pelotão vai esticando. Olhando para trás, ainda vemos Ronda e aquilo que parece ser uma interminável procissão de marchadores. Visualmente é um espectáculo fantástico pois o contraste das cores dos equipamentos com o verde constante do solo é berrante.


Aos 25 km paramos num sítio arborizado (finalmente sombra) onde nos servem sandes mistas e um "donut" que regamos com uma bela colheita de coca-cola. O local é bastante aprazível. Aproveito para alongar um pouco os músculos. Até aqui, viemos praticamente sempre a correr mas não sentimos fadiga nem qualquer espécie de dor.

Recomeçamos com calma porque não convém "agitar muito as águas" depois de termos comido. O tempo começa a mudar e em breve somos apanhados por nuvens que decidiram despejar ali e agora a sua carga. Vestimos os impermeáveis que valem muito mais do que o seu peso em ouro, são extremamente leves e respiráveis, cumprindo com a sua obrigação de nos manter secos e confortáveis.

Iniciamos a longa mas pouco inclinada descida para Arriate, aproveitando para melhorar a nossa média.

Em Arriate somos recebidos por uma multidão entusiasmada. Os nossos queridos Andaluzes são realmente um estímulo para qualquer atleta.

Sabemos que estamos a chegar ao ponto em que iremos ter a primeira subida a sério.

Aos 30 km repomos os níveis de água nos cantis, comemos qualquer coisa e iniciamos o primeiro calvário. São cerca de 3 km sempre a subir, debaixo de Sol e sem qualquer sombra que nos poupe um pouco. Vemos alguns companheiros que se sentam no chão, a tentar recuperar as forças e a vontade. Deixamos sempre umas palavras de apoio, "animo" e "venga", mas não paramos de andar. Para a frente, sem pensar muito, um pé de cada vez.

Finalmente vemos o fim da subida. O terreno plano faz com que recomecemos logo a correr. Temos um controlo de surpresa, onde nos carimbam os passaportes legionários. Corremos mais alguns km, aproveitando todo o terreno possível para ganharmos tempo.

Chegamos a Alcala Del Valle onde mais uma vez somos recebido com euforia e onde temos de galgar uma subida em cimento, não muito extensa mas bastante pronunciada, autêntica "parede".

Estamos a aproximar-nos do equador desta prova, Setenil de las Bodegas, onde teremos nas pernas cerca de metade dos km andados.

Em Setenil temos um autêntico banho de multidão.

Vamos subindo, a correr, porque teríamos vergonha de andar, tal o entusiasmo com que as pessoas que estão ao longo das "Bodegas" nos vão empurrando e incentivando, entoando cânticos com versos de ocasião, adaptados aos atletas que vão passando. Nós os dois somos a "pareja enamorada", cantada em versos imortais...

Esta "calle" tem a particularidade de ter os edifícios incrustados na rocha, o que nos parece bastante peculiar, mas infelizmente não temos tempo de ver tudo com detalhe.


No topo da extensa subida, entramos nos alojamentos pertencentes, creio eu, a uma escola de fisioterapia, onde podemos trocar de roupa e fazer uma rápida análise do estado em que temos os pés.


Convém explicar que nesta prova, podemos enviar uma mochila com equipamento extra para um de dois locais, Setenil aos 55 km e o Quartel aos 70 km. Optámos por Setenil, onde rapidamente recolhemos a mochila.

Da rápida inspecção aos pés resulta que tudo está em ordem. Não há bolhas. Massajo-os e coloco mais vaselina nos pontos que sei serem os mais sujeitos a fricção.

Vestimos uma muda completa de roupa seca, já escolhida para suportar a noite que sabemos nos vai passar a acompanhar muito em breve, comemos mais umas sandes com coca-cola, e lá nos pomos ao caminho.

Já levamos os frontais colocados, embora ainda desligados, e tentamos adiantar o máximo possível enquanto temos luz do dia, correndo sempre que sentimos o corpo a pedir.

Por fim, a noite cai, acendemos os frontais, entrando numa parte do percurso bastante arborizada e onde vamos sempre a ouvir água a correr. Deparamos também bastante lama em certos sítios.

Começamos então uma longa subida com cerca de 10 km de extensão. Aqui o piso tem imensas pedras e raízes, pelo que avançamos com algum cuidado extra. A noite está cerrada. Passa por nós a correr desalmadamente um membro de uma das equipas, com o tradicional cajado arrumado na cova do braço. Pensamos ser o único sobrevivente da sua equipa que estaria a tentar recuperar algum do tempo perdido.

Uma palavra de explicação:
 - As equipas são compostas por 5 elementos à partida. Têm de chegar aos vários pontos de controlo, bem como à meta, sempre juntos, o que vai colocando um stress adicional na prova, sobretudo quando são constituídas por elementos com algum desequilíbrio atlético
entre eles.

Vencida a longa subida, chegamos a um ponto elevado, de onde avistamos ao longe a iluminação da cidade de Ronda. Pareceria tão fácil acabar agora... mas iniciamos uma das piores partes do percurso. Uma descida bastante pronunciada, em cimento, onde temos ir sempre a travar com apoio nos joelhos e nas pontas dos pés.

Aqui vemos um atleta que vai descendo de costas para o percurso. Queixa-se das "rodillas" e sustenta que deste modo se consegue mover com menos dores. Desejamos-lhe boa sorte e lá vamos. Já cheira à nossa próxima paragem, onde há a promessa de termos comida quente à nossa espera. Rapidamente percebemos que não é assim tão fácil de ganhar direito a esse prémio. Vamos percorrendo pedaços de estradão, por vezes voltando a subir a encosta, outras vezes a descer, mas sem termos sinais de aproximação ao Quartel.

Finalmente atravessamos a linha férrea e entramos no aquartelamento do 4º Tercio. Pergunto à Carla como se sente. Foi exatamente neste ponto que as coisas começaram a descambar no ano anterior, tendo sido obrigados a desistir, mas não este ano... Vamos os dois muito fortes e muito entusiasmados.

Temos nas pernas cerca de 70 km.

Entramos na cantina onde nos dão 2 sacos com comida quente. Temos arroz com uma mistura de ovos, pimentos vermelhos e mais qualquer coisa. Temos ainda cachorros quente, coca-cola e batatas fritas.

Escolhemos rapidamente o que vamos aproveitar, deixamos o resto em cima da mesa, nem nos chegámos a sentar, prosseguindo a caminhada enquanto vamos comendo.

Conhecemos o traçado, estamos bem avisados do que se segue. A verdadeira complicação é agora que vai começar ...

Chegamos ao sopé daquela que vai ser uma das maiores subidas que culminará com passagem pela mítica Ermida.


Sierra de Grazalema

A Carla começa a sentir uma enorme má disposição. Provavelmente algo do que comeu caiu-lhe muito mal. Confesso que comecei a sentir calafrios, a pensar que a história se iria repetir e a prova dela acabaria ali. Felizmente, quase no término da longa, longa subida, ela consegue vomitar e fica imediatamente em condições de prosseguir. Valente miúda!

Vencemos a subida à Ermida. Ficamos bem motivados para o que nos falta ainda percorrer

Passamos pela Ermida que, no escuro quase passa despercebida, e iniciamos uma complicada descida para Montejaque. Vencemos! Vencemos aquele que era o pior pesadelo, de acordo com aqueles que tinham feito a prova com o antigo traçado. No entanto sabíamos que este ano era diferente e que nos tinha sido preparado mais um teste à nossa resiliência.

Vamos passando por várias povoações, Benaójan e Travessia, onde no meio da noite e do nevoeiro avistamos um casal idoso que, embrulhado em cobertores, na soleira da porta ia aplaudindo os atletas.

Questionados do porquê de estarem ali, arrostando com o frio, responderam que queriam incentivar os "campeones" que passavam. Confesso que ainda hoje fico sempre uma lágrima ao canto do olho ao lembrar-me deste episódio.

Cueva del Gato. Passando aqui de noite, nem nos apercebemos
da beleza deste local

Vamos descendo por uma estrada de alcatrão, depois por trilhos até chegarmos à mítica "Cueva del Gato", local muito conhecido dos espeleólogos.
 
Aqui iniciamos uma subida que parece ser interminável.

Para ajudar, começo a sentir imenso sono !?!? Chego a fechar os olhos enquanto vou avançando. Por milagre não deslizo para os declives que ladeiam o nosso trilho. A Carla apercebe-se de que algo está errado e coloca-se ao meu lado. Vai abanando o meu braço, para me manter desperto, mas sem grande sucesso.

Finalmente o topo! Que loucura de subida mas com 90 km nas pernas vamos sempre avançando.

Para espantar o sono vou cantando / berrando a plenos pulmões canções dos Xutos e Pontapés. Os animais daquelas florestas devem ter ficado espantados com tal berraria nunca antes entendida por aquelas bandas.

Chegamos a uma hora em que o dia começa a raiar ao longe. Já vemos Ronda. A nossa meta faz-se de difícil porquanto andamos e andamos e não parece estarmos mais próximo do fim.

Entramos finalmente no último vale. Estamos aos pés de Ronda, a magnífica. Prestamos-lhe a nossa homenagem porquanto foi uma adversária valorosa mas agora já não temos qualquer dúvida de que vamos vencer. É nossa a vitória.

























Estamos de tal modo empolgados que começamos a correr pela Encosta del Cachondeo acima. Em certos pontos andamos, noutros corricamos com maior rapidez.

À nossa adrenalina junta-se a voz de uma legionária, que no topo da falésia, grita incentivos a plenos pulmões de cada vez que algum atleta aparece no vale lá em baixo.

Finalmente entramos na cidade. Faltam um ou dois km e desatamos a correr. Já não conseguimos andar, só correr !!! 

Vamos passando e sendo ultrapassados por outros 2 atletas espanhóis. Com 100 km nas pernas, vamos sprintando, picados na nossa vontade de ficarmos à frente deles, sem razão de ser, só porque somos assim, animais competitivos.

Os habitantes de Ronda aplaudem entusiasmados aqueles que aparecem ao fundo da rua, a correr desalmadamente.

Entramos os quatro ao mesmo tempo na reta da meta, a Carla tropeça e cai ao comprido no chão. Imediatamente parámos todos com aquele desafio particular, e os espanhóis cavalheirescamente ajudam-me a levantá-la.


Cientouneros finalmente!!! 101 km percorridos em 20 horas.

Cortamos enfim a Meta.

Finalmente cumpria-se o sonho de anos. Sinto um misto inexplicável de euforia e tristeza!  Durante muito tempo, aquela foi a meta mais desejada. Depois de cruzada, qual seria a motivação para continuar?


O responsável da Legion pela logística do pavilhão onde pernoitámos. Reconheceu-nos da edição anterior e simpaticamente acedeu a tirar uma foto
com 2 cientouneros

Agora era a hora de festejar. Vestimos com imenso orgulho a sudadera de finisher.

Poucos a têm para poder exibir, e era a nossa vez de fazer o "caminho da glória", ultrapassado que estava o "caminho das pedras"

Obrigado La Legion. Obrigado Ronda. Voltaremos um dia!


O descanso do guerreiro




Orgulho cientounero!!!

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